Brexit

Na madrugada de hoje, a xenofobia venceu a razão. A minha incredulidade e estupefação perante os últimos acontecimentos só me permitem tecer algumas considerações simplórias perante um quadro verdadeiramente lastimável.
A primeira observação a ser feita é que a paternidade dessa tragédia se deve em grande parte à inépcia, incompetência e irresponsabilidade de Cameron. Em 2013, ele prometeu que realizaria um referendo sobre a permanência da Grã Bretanha na União Europeia. Contudo, seu intuito não era colocar em pauta uma questão de importância geopolítica, atendendo democraticamente ao clamor social. Tudo o que ele queria era conter o crescimento do partido de extrema direita (UKIP) e tentar unir o próprio partido Conservador que estava divido sobre a matéria. Por razões mesquinhas de natureza infra partidária, ele colocou em pauta uma questão de nevrálgica importância geopolítica em um momento extremamente delicado no qual a Europa atravessava a crise do Euro e mais tarde a crise migratória. Na época, os Trabalhistas argumentaram que isso era uma insanidade, mesmo porque um referendo já havia sido organizado na década de 1970 e, como já fora dito, o momento histórico não era propício a se rediscutir essa matéria em meio a tantas outra crises a serem debeladas.
Pois bem, Cameron foi reeleito e o referendo foi organizado em meio a uma campanha populista altamente enganosa que pregava precipuamente a xenofobia ao estilo Trump. De grosso modo, a população jovem, educada, residente em grandes centros urbanos como Londres votou majoritariamente a favor da permanência. Já a população mais idosa que vivia em regiões interioranas de relativa baixa renda e escolaridade e que apoiava majoritariamente partidos de direita ou extrema direita votou em prol da saída da União Europeia. A questão preponderante para esse segundo grupo era retomar o controle sobre a política de imigração, sendo a xenofobia seu estandarte principal. O resultado desse embate nós já sabemos, resta agora analisar os próximos acontecimentos.
A esse respeito, o princípio mais importante do direito constitucional inglês é o princípio da soberania parlamentar, segundo o qual o parlamento de Westminster é soberano para aprovar qualquer lei sem que haja nenhum óbice a sua ação. Diferentemente do que ocorre com o controle de constitucionalidade brasileiro, nem mesmo a Suprema Corte pode obstar diretamente a ação do Parlamento Britânico.
É relevante ter isso em mente porque, em tese, Westminster não precisa seguir o resultado desse referendo, especialmente porque a maioria avassaladora dos seus membros defende a permanência da Grã Bretanha na União Europeia. Infelizmente, em face à realidade política atual, é altamente improvável que isso ocorra. O Parlamento deve então acionar o artigo 50 do Tratado de Lisboa, que jamais foi utilizado, fazendo com que o Primeiro Ministro informe a União Europeia que a Grã Bretanha optou pela saída, deflagrando um prazo de dois anos para o término desse processo. A questão que se afigura a partir desse momento é definir exatamente como se dará a saída do país, fato histórico sem precedentes.
Perceba que a saída da União Europeia não atende aos interesses econômicos britânicos, transformando o país em um anão geopolítico, principalmente no contexto Europeu. A União Europeia como um bloco econômico tem aproximadamente 500 milhões de habitante e um PIB maior do que os EUA. Mais de 50% da exportações britânicas têm como destino os países europeus. Se a Grã Bretanha quiser se retirar da União Europeia, mas manter o acesso ao mercado único, em tese, ela teria que aceitar condições jurídicas análogas àquelas ofertadas à Noruega.
Para ter acesso ao mercado único europeu, a Noruega tem que efetuar contribuições financeiras periódicas à União Europeia, aceitar vários ditames do direto comunitário, mesmo sem poder influir em sua formulação, e permitir a livre circulação de europeus em seu território. O importante ressaltar aqui é que a Noruega não dispõe de nenhuma representatividade política nas instituições comunitárias, não podendo influir em nenhuma das suas decisões, embora seja forçada a aceitar diversas normas de direito comunitário. Além disso, cidadãos da União Europeia podem viver e trabalhar lá tendo os mesmo direitos dos Noruegueses. A qualquer observador minimamente racional, parece imponderável que a Grã Bretanha relegasse uma posição de destaque no coração político da Europa em prol de um papel quase servil na sua periferia, mas essa se tornou uma possibilidade real, caso ela deseje manter o livre comércio com o maior bloco econômico do mundo.
Como se isso não bastasse, além de afetar sua relação com a Europa, o resultado do referendo pode ocasionar o desmembramento da própria Grã Bretanha, ou mesmo da União Europeia. Enquanto que a Inglaterra e o País de Gales foram preponderantes no resultado da consulta popular, a Escócia e a Irlanda do Norte desejam continuar a participar da União Europeia. Isso significa dizer que a depender de como transcorram as negociações futuras, os Escoceses podem organizar um segundo referendo pleiteando a saída da Grã Bretanha e a entrada na União Europeia.
Já na Irlanda do Norte, a situação é ainda mais delicada. Depois de todo sangue derramado ao longo do século XX, a fronteira entre a Irlanda do Norte e a Irlanda (país membro da União Europeia) teria que ser estabelecida de forma a obstar a livre circulação de pessoas. Já existem até mesmo discussões em andamento a respeito da possibilidade de se unir as duas Irlandas, acredite se quiser.
Raciocínio similar pode ser tecido em relação à própria União Europeia como um todo. A depender de como se dê a saída da Grã Bretanha, é possível que outros partidos eurocéticos de direita sigam na mesma direção e tragédias similares venham a ocorrer em outros países europeus. Não custa lembrar que os países europeus só vieram a se unir de fato depois de vários séculos de conflitos fraticidas, incluindo duas Guerras Mundiais com mais de 70 milhões mortos. Pensar que todo esse morticínio e sacrifício foi em vão é motivo de uma incessante lamúria Dantesca, principalmente quando se tem em mente que a xenofobia está na raiz desse retrocesso histórico.
Portanto, para alguém que acredita piamente no federalismo europeu, esse é um dos dias mais inglórios desde que Winston Churchill propôs pela primeira vez a criação dos Estados Unidos da Europa. Graças a uma xenofobia irracional, Londres pode vir a deixar de ser a cidade mais cosmopolita do mundo e o centro financeiro da Europa pode se deslocar aos poucos para Frankfurt. A depender do prosseguimento das futuras negociações políticas, é triste constatar que a Grã Bretanha, por livre e espontânea vontade, venha deixar de ser verdadeiramente grande.